Em entrevista publicada na Folha de S. Paulo na quarta-feira (23) – veja íntegra –, o brasileiro Ricardo Campos, professor assistente na Universidade de Frankfurt, na Alemanha, afirma que há hoje, no mundo, uma crescente tendência de responsabilização das plataformas digitais, como Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp, por eventos que podem ser interpretados como ameaças à democracia.
Na entrevista ao jornalista Nelson de Sá, da Folha, Ricardo Campos, de 36 anos, diz que as “eleições americanas de 2016, Brexit e outros eventos globais deixaram clara a posição central das plataformas digitais como a nova infra-estrutura da comunicação cotidiana da população, com nítido impacto na democracia”.
De acordo com ele, “hoje há um movimento de distanciamento da imunidade do meio para uma responsabilização”. Citando a lei alemã de 2017 como o início de um novo momento para a internet, Campos afirma que o modelo de imunidade, vigente desde 1996 nos EUA, foi desenhado para um momento anterior, de estímulo à internet nascente, e enfrenta uma crise.
Formado em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Ricardo Campos foi um dos organizadores do livro “Fake News e Regulação” (Revista dos Tribunais, 2018), ao lado de Georges Abboud e Nelson Nery Jr.. É diretor do Instituto LGPD (Legal Grounds for Privacy Design) e foi um dos interlocutores dos parlamentares (a exemplo do senador Antonio Anastasia, do PSD-MG) que participaram da formulação e análise da Lei das Fake News, aprovada no Senado e em tramitação na Câmara.
Veja a seguir os principais trechos da entrevista:
O que é a responsabilização do meio?
O modelo de imunidade, que reinava até o momento, entrou em crise nos últimos anos. Hoje há no mundo um claro movimento de distanciamento da imunidade do meio para uma responsabilização procedimental. As plataformas criam espaços públicos a partir de relações privadas, e nesse sentido são decisivas para a formação da opinião pública dentro das democracias. Portanto, a lógica de análise deixa de se circunscrever à esfera privada.
Por favor, cite mecanismos de responsabilização contemplados no projeto de fake news.
Há alguns exemplos interessantes. O artigo sobre moderação de conteúdo é um deles. Até o momento, as plataformas fazem a moderação, ou seja, criam mecanismos próprios de governança conforme seus termos de uso, que podem ou não coincidir com preocupações de ordem pública. O artigo 12 visa justamente introduzir deveres de adotar mecanismos de governança para promover a liberdade de expressão, por meio do contraditório em relação a conteúdos removidos. Isso é importante, pois tratamos de um foro de comunicação pública.
Outro ponto é o chamado direito de resposta. Deveria haver notificação das plataformas para usuários que interagiram com conteúdo falso, checado por agências independentes, ou removido por ser ilícito. Esse dever seria uma forma de propiciar mais informação ao usuário que foi exposto à desinformação, se valendo das funcionalidades das plataformas. O instituto LGPD, do qual sou um dos diretores, fez uma proposta de redação do artigo 12, junto com seu time de consultores do Parlamento Europeu e governo alemão, trazendo para o Brasil o estado da arte sobre o assunto.
A imunização da internet, de 1996 nos EUA a 2014 no Marco Civil no Brasil, foi um momento histórico, no seu entender?
Esse é o ponto mais importante. A seção 230 do CDA [Communications Decency Act] de 1996 criou uma blindagem do meio visando estimular a inovação da nova economia em “status nascendi”. Esse regime jurídico de imunidade migrou, com algumas nuanças, para a Europa nos anos 2000 e, com atraso, para o Brasil no artigo 19 do Marco Civil. Salvo poucas exceções, o meio não era responsável por conteúdos de terceiros. A ideia era estimular as próprias empresas a fazerem a moderação do conteúdo.
A legislação alemã de 2017 inicia outro momento?
O mundo está se distanciando do modelo de responsabilidade por imunidade, pois o momento da inovação ficou para trás. A Comissão Europeia está terminando, até o fim de 2020, a proposta do Digital Services Act, uma profunda revisão da diretiva do comércio eletrônico de 2000, que ia na direção da imunidade. No Brasil, o artigo 19 do Marco Civil é objeto de recurso extraordinário e o Supremo convocou audiência pública.
A lei alemã é um exemplo de distanciamento daquele primeiro momento e de reconhecimento dos impactos na democracia. As próprias plataformas já reconhecem e têm aprofundado e investido em moderação. É importante que as melhores práticas nessas iniciativas, que se conformarem aos interesses públicos, sejam implementados por todos os intermediários. Trata-se apenas da exigência de adoção dos melhores mecanismos de governança disponíveis para a moderação e não da responsabilização pelo conteúdo de terceiros.
A decisão da Corte Europeia, vetando a transferência de dados pessoais aos EUA pelo Facebook, é parte disso? E até que ponto as revelações de Snowden estimularam essa nova consciência?
A proteção de dados não se inicia com Edward Snowden, mas na Alemanha na década de 1970, com as primeiras leis. O caso Snowden abriu um novo capítulo, sobre o impacto da cooperação às escuras entre Estado e empresas privadas, no direito à privacidade das pessoas.
Snowden levou também os serviços de mensageria privada a incorporarem criptografia. Isso melhorou a privacidade. Mas a solução desse problema gerou outro. Na medida em que o WhatsApp, por exemplo, implantou funcionalidades de comunicação de massa, ele esbarrou em questões sensíveis da democracia.
Em quase todas as constituições de estados democráticos, a comunicação pública é regulada pelo Estado pois impacta nos pilares da democracia. Já a comunicação privada é resguardada de maior sigilo e privacidade.
O polêmico artigo 10 do projeto de fake news busca enfrentar justamente esse problema, ao tentar implementar mecanismos de responsabilização por crimes dentro do WhatsApp. O ministro Alexandre de Moraes afirmou que milícias digitais têm sido usadas “para uma grande lavagem de dinheiro”. Essas milícias, que atacam a democracia, agiriam justamente nesse vácuo de responsabilização. As cenas dos próximos capítulos estão programadas para as próximas eleições.
A discussão sobre remuneração de conteúdo jornalístico por Google e Facebook, na Austrália, também é parte desse novo momento?
É uma questão interessante. As plataformas são máquinas eficazes de publicidade, com um novo modelo de negócios, que traz desafios ao regulador. Uma diferença importante é que as organizações jornalísticas precisam remunerar seus jornalistas, ao passo que os intermediários circulam o conteúdo, vendem publicidade, mas não remuneram os autores. Cabe questionar esse tratamento jurídico desigual, pois pode trazer desequilíbrios competitivos.
A curto prazo o cidadão tem sensação de democratização do acesso à informação, mas a longo prazo há uma deterioração da produção de informação de qualidade, com reflexos na democracia, com o enfraquecimento do jornalismo que já se faz sentir em muitos lugares. Em toda democracia, o recurso escasso é a produção de informação de qualidade e plural. Cedo ou tarde o Congresso terá que se debruçar sobre o tema.
Qual é o balanço que o sr. faz dos esforços semelhantes na Espanha e outros países?
A Espanha tomou esse caminho e agora a Austrália. O argumento australiano foi de preservação da concorrência e também de um cenário de mídia sustentável, ou seja, uma esfera pública de qualidade.
Outros dois desdobramentos preocupantes no Brasil, sobre esse assunto, são a contratação do Google pela Secom [Secretaria de Comunicação, hoje parte do Ministério das Comunicações] e suas agências de maneira assimétrica em relação aos demais veículos, para fins de propaganda do governo, e a transmissão de futebol pelo YouTube.
No primeiro, a forma de contratação passa ao largo do regime jurídico de publicidade, que conta com uma lei e um reconhecido regime dinâmico e eficaz de autorregulação. No segundo, o YouTube atua como veículo tradicional de mídia, ou seja, de comunicação de massa, sem ser enquadrado como tal nos termos das leis.
O Tribunal de Contas e o Supremo terão de decidir em breve se o direito brasileiro se aplica às plataformas ou se existiria um justificável regime jurídico de exceção para os serviços digitais de empresas estrangeiras.
A votação do projeto de fake news está próxima. Qual é a principal controvérsia, em torno do artigo 10?
O artigo vem tentar resolver o problema da dificuldade de responsabilizar pessoas ou empresas que se valem das funcionalidades de comunicação de massa, dos serviços de mensageira, de modo abusivo. Com essas funcionalidades, você pode atingir milhões, exatamente como um veículo tradicional de comunicação de massa, sem entretanto ser responsabilizado por eventuais crimes.
As comunicações privadas devem ser resguardas de privacidade e sigilo, mas na medida em que essa comunicação se torna pública, podendo afetar os pilares das instituições democráticas, o Estado deve, sim, criar mecanismos que assegurem a responsabilização dos infratores.
Quais são os principais pontos de contato entre os textos na Alemanha e no Brasil? Qual é o balanço que o sr. faz da legislação alemã?
O ponto central de contato, além de vários institutos incorporados, é o espírito da lei em impor deveres ao meio, ao reconhecê-lo como infra-estrutura pública de comunicação, com impacto na democracia.
Após três anos de vigência, o governo alemão apresentou há duas semanas um relatório sobre a lei. Foi um balanço extremamente positivo e retirou o receio inicial de que levaria a um “overblocking” ou à remoção preventiva de conteúdo pelas plataformas, violando a liberdade de expressão. Pelo contrário. Não houve nenhum indício desse primeiro receio, que foi a principal crítica do setor econômico regulado à lei alemã, há três anos.
A Alemanha e a Europa estão se afastando do “excepcionalismo da internet” defendido, por exemplo, pelo ativista John Perry Barlow [da Electronic Frontier Foundation], no qual a internet era vista como um império das relações privadas sem necessidade de ingerência do Estado e defesa de direitos fundamentais.
Nos últimos anos, a vida das pessoas praticamente migrou para o mundo online, com impacto decisivo para o exercício de direitos fundamentais. Querer afastar a aplicação do direito, a criação de obrigações, vedação de discriminação algorítmica etc. para os serviços digitais é um entusiasmo anacrônico, com a atual importância do mundo virtual na vida cotidiana.
É importante que o Estado alcance esse universo em seu papel de garantia de direitos fundamentais. Hoje, a separação entre mundo offline e mundo online é quase que inexistente.