Para superintendente da Unidade de Planejamento e Assuntos Estratégicos da Prefeitura de Santo André (SP), o Grande ABC foi capaz de criar senso de pertencimento praticamente sem igual no País.

José Police Neto, superintendente da Unidade de Planejamento e Assuntos Estratégicos da Prefeitura de Santo André

 

Em 1950, Santo André tinha 106 mil habitantes. São Bernardo, 26 mil. São Caetano, 59 mil. Diadema, meros 3.000, enquanto Mauá e Ribeirão Pires, 9.400 e 9.500, respectivamente. Rio Grande da Serra só vai aparecer no censo de 1960, com 3.900 habitantes.

Os pouco mais de 200 mil habitantes aumentaram mais de 14 vezes nos últimos 70 anos, para chegar aos atuais 2,83 milhões. Terra de oportunidades e carreiras abertas ao talento. A maior parte deste excepcional crescimento deveu-se à migração de populações de todo o País, em especial de todo Nordeste brasileiro e de Minas Gerais.

Mais do que o crescimento, a capacidade de integração do ABC impressiona quem estuda a questão. Durante boa parte do fluxo migratório inicial, as diversas comunidades de migrantes reuniam-se em bairros nos quais predominava uma origem: havia os bairros dos mineiros, dos baianos, dos cearenses, dos pernambucanos, e assim por diante. Em menos de 20 anos, aquela população que em sua maioria havia vindo do campo e de pequenas cidades não só se torna urbana e operária, como se torna a vanguarda da indústria tecnologicamente avançada e, não raro, a elite da mão de obra qualificada e especializada. Tradição que se acentua nas gerações seguintes.

Não obstante esta origem variada, e associada à transformação em tempo recorde, o Grande ABC foi capaz de criar uma identidade própria, um senso de pertencimento praticamente sem igual no País. A despeito das especificidades de cada um dos sete municípios, das suas diferentes histórias e nichos do processo produtivo onde se inseriram, paira sobre estas diferenças a identidade do ABCDMRR.

A comparação com a cidade de São Paulo só realça o valor intangível desta identidade. Na Capital, com suas múltiplas realidades e centralidades, muitas vezes a identidade do bairro se sobrepõe à da cidade. No Grande ABC, por mais que os cidadãos de cada um dos sete municípios se orgulhem de sua cidade e cultivem um ‘bairrismo’ sadio, existe, persiste e se fortalece a identidade como morador deste Grande ABC.

Se esta identidade se construiu nos períodos áureos da grande transformação industrial das décadas de 60 e 70, quando a região foi o coração industrial do Brasil e o epicentro da grande transformação nacional que nos levou a outro patamar de desenvolvimento, foram nos tempos difíceis que ela se consolidou. O ABC da indústria petroquímica e automobilística foi também o ABC das grandes lutas operárias, da reformulação do sindicalismo, das experiências políticas e administrativas inovadoras – as quais dando ou não os resultados esperados, oxigenaram a vida política do País e da região.

Mas o grande desafio veio com o processo de desindustrialização do País, cujos efeitos fulminantes na economia da região obrigaram não só a nova visão, mas a uma maior colaboração e uma integração ainda maior. A multiplicação de visões políticas distintas, que tem sido uma das marcas do Grande ABC, consegue a proeza de gerar campanhas eleitorais acirradíssimas, mas não leva à fragmentação porque, uma vez encerradas as eleições, as gestões mantêm e aprimoram a tradição de cooperação e governança coletiva, das quais o Consórcio do ABC é talvez o melhor, mas não único, exemplo. Outro exemplo dessa cooperação regional, a Fundação ABC reúne nossos municípios na nobre jornada promotora de política de saúde e bem-estar, superando definitivamente limites territoriais e assumindo, portanto, um protagonismo poucas vezes visto de integração de gestões.

Este modelo de governança bem desenvolvido e consolidado, capaz de ser funcional sem derreter as especificidades, de ultrapassar diferenças políticas em torno de um projeto comum para a região, é uma conquista cujo alcance nem sempre é compreendido em toda a sua relevância. Regiões metropolitanas de todo o mundo ainda batem cabeça à procura da governança eficiente e eficaz, modelo que o ABC construiu praticamente do zero, criando fórmulas inovadoras ao invés de seguir cegamente modos já superados. Este resultado, que não seria possível sem aquele senso de pertencimento mencionado antes, demonstra o valor deste bem intangível que é a ‘cidadania do ABC’.

Por muito tempo esta identidade esteve presente na população, mas nem sempre nas elites dirigentes. Foi necessário algum tempo para se compreender que as nuvens de tecnocratas – que como gafanhotos iam de município a município após o fracasso eleitoral impor modelos externos e/ou teóricos sem realmente compreender a região – são incapazes de potencializar as vantagens específicas e as qualidades locais do Grande ABC.

Só se conseguiu superar os piores efeitos da crise de desindustrialização na medida em que a região conseguiu firmar-se em seus valores e seus recursos, na sua própria visão inovadora imbuída daquela identidade e daqueles valores forjados nos tempos de fartura quanto dos de carestia. Este foi o grande salto qualitativo que mantém o Grande ABC no cerne das decisões estaduais e nacionais.

Esta identidade e unidade de ação, em especial frente aos centros de decisão estadual e nacional, são cada vez mais importantes. O ABCDMRR nasce simbolicamente em 1560, quando a coroa portuguesa decide desmantelar Santo André da Borda do Campo e remover sua população para o que seria São Paulo. Ao longo destes séculos todos, muitas decisões tomadas de forma mais ou menos arbitrárias acabaram por impor desafios ao Grande ABC: a implantação de indústria pesada sem investimentos adequados em infraestrutura, a desindustrialização súbita e sem medidas de transição, entre muitas outras. Apesar disto, a população do ABC sempre soube enfrentar estas dificuldades e encontrar soluções próprias e originais, criando esta realidade muito particular que mantém a região em foco pelo seu dinamismo.

Até aqui, falei dos aspectos gerais, mas esta reflexão não seria possível nem completa sem que eu falasse da minha experiência pessoal quando cheguei ao ABC há um ano. Meu grande medo era, involuntariamente, ser mais um daqueles ‘gafanhotos’ que mencionei, mais um com respostas prontas totalmente estranhas à realidade do ABC, incapaz de compreender a riqueza da identidade própria historicamente construída ao longo de tantas décadas de lutas e dificuldades.

O desafio era aprender, beber desta fonte rica de experiências inovadoras e bem-sucedidas. Mas logo entendi que este aprendizado só é possível para quem despiu sua visão de mundo prévia para, com humildade, tentar vestir aquele senso de pertencimento que é a própria essência do ABCDMRR. É uma tarefa complexa, sobre a qual dezenas de milhares de migrantes tiveram êxito quando se transformaram de pessoas do campo em um operários de ponta, mas também na qual muitas mentes brilhantes falharam pelo ranço tecnocrático incapaz de compreender as sutilezas deste pertencimento.

A batalha cotidiana, compreendi, não era entender o Grande ABC, porque ele só pode ser entendido por quem consegue fazer a transição e se tornar, de fato, “cidadão do ABC”, compreendendo esta dimensão sutil do pertencimento. É este o desafio que tenho me imposto e para o qual espero a colaboração crítica de todos vocês, leitores.