Quase três décadas após a derrocada do socialismo soviético e a sua substituição pelo capitalismo russo, alguns aspectos desse processo continuam desconhecidos no mundo ocidental. Um exemplo é a privatização de centenas de milhares de empresas, de todos os portes, promovida pelo governo russo, que acabou beneficiando uma casta de oligarcas. Essa transição foi o tema da palestra da professora Lenina Pomeranz no Encontro Democrático realizado nesta quinta-feira (18), na sede do Espaço Democrático – a fundação do PSD para estudos e formação política.
Realizados periodicamente para discutir temas relevantes e gerar conteúdo que ajude a orientar a atuação dos representantes do PSD em diversas instâncias de governo, os Encontros Democráticos são transmitidos ao vivo pela página do Espaço Democrático no Facebook, onde as palestras podem ser assistidas na íntegra (veja aqui a palestra de Lenina Pomeranz). Os debates também são publicados posteriormente na forma de cadernos, disponíveis no site e impressos.
Nesta quinta, a palestrante convidada foi uma das mais preparadas analistas sobre a história recente da Rússia. Lenina Pomeranz é doutora em economia pelo Instituto Plejanov de Planificação da Economia Nacional, de Moscou, título obtido na então Rússia soviética. Foi aluna dos conceituados economistas poloneses Michal Kalecki e Oskar Lange. Em 1990, organizou o livro “Perestroika – Desafios da Transformação Social na URSS”. Hoje aposentada, leciona em caráter voluntário na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP.
Lenina Pomeranz é autora do livro “Do Socialismo Soviético ao Capitalismo Russo”, recentemente lançado pela Ateliê Editorial. A obra descreve a passagem da economia socialista soviética para o sistema capitalista russo, processo que a autora chama de transformação sistêmica.
No Encontro Democrático, ela falou sobre dois elementos básicos dessa passagem: o modo de funcionamento do sistema econômico soviético e a privatização da propriedade pública.
Mostrou, de início, que os meios de produção eram de propriedade pública universal e geridos por pessoas nomeadas (nomenklatura) pelo Partido Comunista, que levava em conta não a capacidade técnica do indicado, mas sim sua identificação e lealdade aos princípios comunistas.
A administração estatal da economia previa o planejamento diretivo, com planos de longo prazo (10 anos e mais), que estabeleciam as diretrizes estratégicas de desenvolvimento, e planos quinquenais, que decompunham as diretrizes para o período de cinco anos. Planos operativos anuais eram elaborados pelas empresas em conjunto com os ministérios a que estavam subordinadas.
Os ministérios, explicou Lenina, eram os responsáveis pelo cumprimento das metas. O Ministério do Comércio Exterior, por exemplo, era responsável por todo o relacionamento com empresas e nações estrangeiras, se encarregando de repassar às unidades de produção recursos e as orientações para o atendimento das exigências dos clientes do exterior.
Esse sistema rígido, segundo a professora, gerou problemas como a escassez de recursos, demanda superior à oferta e filas de consumidores em busca de produtos básicos, trazendo consigo a formação de uma economia subterrânea. “Os dirigentes de fábricas, para driblar as dificuldades de obtenção de matérias-primas e insumos, buscavam acumular recursos para trocá-los com outras unidades, conseguindo assim materiais que o governo não enviava”, contou Lenina, lembrando que também os funcionários subalternos se apropriavam de recursos da empresa para comercializar no mercado negro.
A ineficiência crescente gerou tentativas de reforma, mas elas esbarravam na resistência do Partido Comunista. A barreira só foi rompida com a Perestroika, em conjunto com a Glasnost, uma das políticas introduzidas na União Soviética por Mikhail Gorbachev, em 1986. A palavra Perestroika, que literalmente significa reconstrução, recebeu a conotação de reestruturação econômica.
O segundo aspecto abordado na palestra pela professora Lenina Pomeranz foi a privatização das empresas públicas na Rússia, após a desconstrução do regime soviético, ocorrido entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990.
Ela explicou que o processo de privatização da propriedade pública foi constituído por dois programas. O primeiro visava a transferência para particulares de todas as pequenas empresas de comércio e serviços e, entre 1992 e 1994, envolveu cerca de 24 mil empresas. Por meio dessa privatização, ressaltou Lenina, “realizou-se a efetiva desapropriação da propriedade pública, detida formalmente pela população e administrada pelo Estado. Teoricamente, a opção por esta forma de privatização tinha por objetivo ganhar o apoio da população para a privatização, entregando a cada uma das pessoas a parcela da propriedade pública que lhe pertenceria”.
Na prática, segundo a palestrante, praticou-se um grande “engodo”, pois as maiores e mais estratégicas estatais russas foram deixadas para um segundo momento, quando, após diversas manobras e acordos políticos, um grupo de magnatas se tornou proprietário das maiores e mais lucrativas empresas do país (setores de petróleo, níquel, alumínio, entre outros). “Eles constituíram o que se convencionou chamar de oligarcas, os seja empresários detentores de forte influência na condução dos negócios de Estado, sendo que alguns se tornaram ministros poderosos e integrantes do conselho de segurança do Estado”, contou Lenina.