Leia a seguir o artigo de Renato Janine Ribeiro (O Estado de S.Paulo, de 19/10/2014):
Temos dois modos de comentar o que acontece na cidade e na sociedade. Um deles é macro: lemos estatísticas, procuramos ver o que acontece em larga escala – como a melhora ou queda do nível de vida. Outro é micro: um pequeno acontecimento abre um leque de significações. Sociólogos, economistas e gestores priorizam o primeiro modo. Assim veem onde estão as ciclovias e cruzam com dados de trânsito, nível dos moradores e, a grande questão, se as bicicletas servem para o lazer dominical ou o transporte cotidiano. Pedalam por prazer ou para ir ao trabalho? Ciclofaixas de Kassab ou ciclovias de Haddad? Esse levantamento é fundamental para o gestor – e para nós.
Já a abordagem micro se abastece sobretudo de pequenas histórias, que os franceses chamam de fait divers, um pequeno fato curioso que não cabe em nenhuma editoria do jornal. Seu exemplo mais célebre é o do francês que entra numa igreja, em 1830, e atira na amante que rezava; esse caso excepcional, que extrapola as rubricas de “crime” e “vida religiosa”, deu a Stendhal o mote para sua obra-prima, O Vermelho e o Negro. No macro, lidamos com a regra; no micro, com a exceção. Filósofos, antropólogos e psicanalistas adoram fait divers. Eu mesmo, quando escrevo sobre política ou comportamento, meus temas prediletos, uso muito essas anedotas do cotidiano – o que explica um tanto a diferença entre o filósofo político e o cientista político, que dará mais atenção do que eu aos números, como sondagens de opinião pública.
O grande fait divers destes dias são as tachinhas que alguma alma má jogou nas ciclovias da Rua Artur de Azevedo, em Pinheiros.
Antes de continuar, a diferença entre ciclovia e ciclofaixa. Ciclovia é um espaço permanentemente designado para uso só de bicicletas. Uma separação física a segrega da parte da rua usada pelos veículos a motor. Já a ciclofaixa é uma separação leve e temporária, como temos nas avenidas em que uma faixa é reservada aos domingos para o lazer. Kassab fez ciclofaixas, Haddad faz ciclovias.
O que significam as tachinhas em Pinheiros? Pode ter sido uma única pessoa que as lançou. Do ponto de vista macro, seu significado tenderia a zero. Diariamente, passam perto das ciclovias dezenas de milhares de pessoas. Que uma única seja espírito de porco é exceção, difícil de coibir. Mas a notícia, por ser curiosa e difícil de classificar, ganha o espaço público. É um prato para quem interpreta, quem discute o sentido, mais do que para quem só analisa. É a diferença entre ler o evento e o Excel.
Ser excepcional não quer dizer que o gesto não tenha raízes. Uma pesquisadora recentemente desabafou nas redes contra as ciclovias, num protesto legítimo, só saindo do bom senso ao sustentar que a cor vermelha delas era propaganda do PT; o que não é, pois essa é a cor utilizada internacionalmente para as faixas de bike. Mas o discurso indignado e legítimo, assim como a ação criminosa e indefensável, expressam uma revolta com a perda de uma faixa nas ruas. Vamos à revolta.
Está em jogo o que queremos da cidade. Nossas cidades foram sequestradas pelo automóvel. Todo ser racional sabe que esse é um caminho péssimo. Quase tudo que se faça para melhorar a cidade exige enfrentar o carro. Semáforos mais longos para os pedestres (Kassab) dão-lhes mais segurança. Faixas para ônibus (Haddad) aceleram os coletivos. Precisamos de mais praças, mais locais de lazer. O verde tem que vencer o asfalto.
As restrições ao carro, que já incomodam muitos, precisarão aumentar. Isso é inevitável. Podemos demorar nisso, e perder muito; ou avançar, ganhando tempo, dinheiro e qualidade de vida. Aqui está o “custo São Paulo”: a maior cidade do Brasil está com vários gargalos na economia. O que depende de transporte físico demora. Um profissional faz poucos atendimentos em domicílio por dia, a não ser que use moto. Desaba a produtividade – que hoje é essencial na economia. Um prefeito inteligente de cidade média que evite o excesso de carros – e invista em banda larga e formação profissional – pode roubar muito da economia paulistana. Em São Paulo há uma resistência insensata, egoísta, dos que têm carro à limitação de seu uso. Um baile da Ilha Fiscal, uma dança sobre um vulcão. Veja-se a oposição de Paulo Skaf, então presidente da Fiesp, a um aumento socialmente justo no IPTU, destinado em parte à melhoria do transporte coletivo. Daí que, em vez de dar um upgrade significativo nos ônibus, à Prefeitura só restou fazer faixas.
Seria bom discutir mais as alternativas ao carro. Sem dúvida, aumentar o número de ônibus, redefinir alguns ou muitos trajetos, capilarizar a rede. E, também, aumentar o rodízio? Cobrar pedágio urbano? É preciso obrigar a classe média a deixar o carro em casa. Seguir os exemplos de Paris, Londres, Nova York? Mas como fazer isso quando tanta gente vê o carro como extensão da sua psique? Será preciso martelar por anos os males do transporte individual. Será preciso fazer os donos de carros perceberem o óbvio: o uso do carro tem de ser comedido. Pena que essa e outras causas que vão além da política, para entrarem na agenda da vida, não tenham sido mais debatidas na campanha eleitoral, apesar de nela termos tido dois candidatos da família verde.
Pequenos vislumbres do futuro – como as faixas de ônibus e bicicletas -, um futuro que na Europa é presente faz tempo, precisam conquistar o aval de nossa sociedade. Quanto mais demorarmos para defender a vida contra os carros, mais caro pagaremos. Mas a consciência das pessoas ainda é limitada a respeito. Até quem adora a Europa “civilizada” não quer que essa civilização se implante aqui. Uma coisa é andar de metrô, a pé ou de bicicleta em Paris, outra, onde moramos. Mas que cabeça é essa, em que a vida com qualidade só pode acontecer nas férias? Em que a vida em casa é sem qualidade? Em que aceitamos 11 meses por ano ruins? Que vantagem tiro eu, vivendo sem qualidade, a não ser uma: a de viver na exceção? Nosso espaço urbano é devastado, mas em algum ponto sou VIP, que coisa boa. Nosso VIP, na Europa, seria um simples cidadão. Compensamos pelo amor à desigualdade a má qualidade do cotidiano. Na Europa, sentir-se especial é sentir-se igual aos outros. Sentir-se especial é, aqui, sentir-se exceção.
Em dezembro vi o Rei Leão numa ilha de Hamburgo. Terminando o espetáculo, imaginei uma correria para pegar as barcas de volta ao porto. Nada disso. Centenas de pessoas calmas, sem ninguém furar a fila. Grau zero de ansiedade. No Brasil, filas são um horror. A bilheteria abre atrasada, sem troco e até sem conexão à internet. A essa altura, há uma multidão apinhada à volta da bilheteria. Quando começa a venda – atrasada – é um tumulto. Na Europa, qualquer um, sem riqueza ou nada, compra o ingresso. Aqui, o que lá é direito vira privilégio. Se eu tiver um contato ou direito à fila VIP, me sentirei privilegiado por ter conseguido o que deveria ser banalmente fácil. Lembro quando morreu o governador Covas, em 2001: no palácio houve duas filas, uma para a gente comum do povo que o amava, outra para os VIPs. Comentei o assunto no Caderno2. Nem perante a morte somos iguais.
Prossigo nessa rápida fenomenologia – no sentido literal de descrição de fenômenos, tentando ver seu sentido, mesmo que o sentido só venha à luz na fresta, na exceção, no ato falho – me perguntando por que ações criminosas se tornam expressão possível de um descontentamento que poderia fluir por canais legítimos de vazão. Por que os contrários às ciclovias não se manifestaram em frente à Prefeitura? Por que, quando falam, quase sempre se portam como idiotas, tal a lojista que reclama porque os “carrões importados” das clientes não poderão estacionar em frente de seu comércio? Não tem gente mais sagaz, menos aferrada a privilégios, para expressar um discurso minimamente civilizado?
Estamos vivendo a exposição nua e crua do discurso do privilégio como sendo o que ele de fato é: a apropriação de todo o espaço de direitos por uma minoria que não aceita as tendências da história. Os pobres estão avançando. Os sem-carrão falam mais, exigem mais. E o privilegiado é tão tosco que não consegue articular uma defesa melhorzinha. Vem a público falar em “gente diferenciada” ou nos direitos dos pouquíssimos com carrões. Não à toa, toda vez que um jornal cobre grã-finos discutindo política, a matéria se torna deboche. Joel Silveira em 1943 ou Eliane Trindade em 2014.
Isso lembra um episódio da história romana, quando a plebe entra em greve e se retira para o alto do Monte Aventino, clamando por direitos. Um nobre vai lhes falar. Explica que não entendem de política e devem deixar as decisões nas mãos da aristocracia. O mero fato de ele falar-lhes já é contraditório. Como usar a razão para explicar, aos plebeus, que eles são irracionais? É o mesmo que defender na TV vagas para os carrões na frente da loja. É dizer a um público com pouco dinheiro que é justo o espaço carroçável ser apropriado pelos ricos. Ninguém, numa sociedade com cultura democrática, sequer pensaria em dizer isso. Se fosse defender a desigualdade, usaria melhores argumentos.
Temos um lado conservador muito inculto. Não consegue, nem tenta, elaborar seu discurso. Deriva logo para o ódio. Até partidariza a discussão, embora as bicicletas mostrem uma certa continuidade entre Kassab e Haddad.
Mas a ideia de partir para a ilegalidade em defesa dos privilégios é inquietante. Devemos respeitar a lei e, sobretudo, seus procedimentos pacíficos. Jogar tachinhas é pouco, comparado a atirar numa outra pessoa – mas outro dia li uma pessoa, no Facebook, prometendo que tomaria armas contra a inflação. Obviamente é um contrassenso (nem armas nem passeatas impediriam a degradação da moeda), mas é igualmente absurdo querer resolver conflitos fora da lei. Será que nossa confiança na lei ainda é tão baixa que há quem acredite, após uma ditadura militar que deixou o País em petição de miséria, que a violência possa ser a solução? Eleições frustram. Poucos saem realmente felizes delas. Mas não há outro caminho senão o da lei. Pode demorar, mas o que ela escreve, escreve em pedra.
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Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política da USP, é autor de A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (Companhia das Letras)