“Pandemia: lições e legados”, artigo de Police Neto


"Quando o foco no enfrentamento da Covid-19 passar, teremos de refletir com cuidado sobre as lições que ela nos deixará, em especial para enfrentar novos desafios similares que infelizmente podem ocorrer"

27/03/2020

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Mudanças culturais tendem a ser muito mais lentas que as mudanças estruturais produzidas pela tecnologia e pelo conhecimento e, muitas vezes, acabam limitando a amplitude destas outras mudanças. Para citar um exemplo extremo, cômico, mas verdadeiro, há alguns anos, o tamanho das peças que seriam produzidas para a Estação Espacial Internacional foi limitado pela largura das estradas e túneis pelos quais elas deviam passar. Estas larguras padronizadas vinham da época romana e eram determinadas pelo espaço necessário para que duas bigas trafegassem, ou seja, um padrão cultural de dois mil anos limitava a ponta do avanço tecnológico da Era Espacial.

Quando o foco no enfrentamento da situação crítica gerada pela pandemia da Covid-19 passar, teremos de refletir com cuidado sobre as lições que ela nos deixará, em especial para enfrentar novos desafios similares que infelizmente podem ocorrer. Mas se há um ponto positivo em toda crise é que ela nos ajuda a avançar na mudança do padrão cultural, pela emergência, mexendo com hábitos que de, outra forma, talvez jamais seriam superados.

As condições para uma maior implementação do home office (o teletrabalho) nas áreas onde ele é possível, por exemplo, já existem há bastante tempo. Seu avanço estava limitado pela falta de rotinas estabelecidas que dessem maior segurança aos diversos atores na sua adoção, gerando medos e ansiedades quanto a sua efetividade.

De repente, boa parte da atividade profissional passa a só ser possível através do teletrabalho por conta da necessidade de reduzir riscos gerados pela pandemia. É evidente que são necessários muitos ajustes e aprendizados, mas, sem a emergência batendo às nossas portas, a tendência natural à acomodação teria postergado definitivamente a experimentação essencial a estes ajustes.

Iniciado o experimento, se descobrirá que, em muitos pontos, o que era visto como improviso para tempos de crise pode gerar – quando bem aplicado – ganhos de produtividade pela redução dos deslocamentos, otimização do tempo, rotinas melhor estabelecidas, até ampliação do diálogo.

Outro exemplo diz respeito ao sistema de delivery. Em grande parte tem sido a ampliação deste serviço que tem impedido que o impacto econômico das políticas necessárias ao controle da pandemia sejam ainda mais severos. As possibilidades de expansão dos serviços de delivery são enormes, inclusive em termos urbanísticos poderiam contribuir para reduzir desigualdades regionais e garantir que muitas áreas em localização privilegiada sejam utilizadas para outras finalidades mais rentáveis e reduzindo custos fixos relativos à localização, gerando empregos na área de logística em outras áreas.

Sem um impeditivo forte em termos de localização por conta da extensão e disseminação do delivery, reduz-se de forma significativa o capital necessário para empreender, assim como otimizam-se deslocamentos. No nível local é possível inclusive ampliar a utilização de meios ativos não poluentes, como bicicletas.

Qual é o grande obstáculo para esta expansão do delivery? A barreira cultural. As pessoas estão acostumadas a ir ao supermercado escolher nas bancas, acreditam que as relações especiais entre cliente e fornecedor só são possíveis fisicamente, consideram a localização física um elemento essencial para o sucesso. Na medida em que a condição de emergência força ao abandono destas premissas culturais por causa das regras epidemiológicas e as pessoas passam a ter de adotar outra metodologia, alguns destes hábitos e até idiossincrasias vão sendo superados. As pessoas descobrem novas formas de sociabilidade que não dependem do contato físico e, acima de tudo, muitos descobrirão a enorme janela de oportunidades que o delivery pode oferecer.

Não ficarei surpreso, por exemplo, se muitas pessoas que começarem pequenos negócios informais para driblar o desemprego produzindo em casa e distribuindo por delivery produtos necessários em condições seguras não acabem descobrindo uma oportunidade muito maior do que esperavam para empreender. Neste aspecto, esperemos que o Estado seja capaz de compreender e se adaptar a esta situação, reduzindo burocracias, limitações de uso tornadas obsoletas, regulações arcaicas.

Mas uma das maiores mudanças culturais que está se processando tem tido efeitos mais rápidos, mas menos visíveis: a volta da racionalidade à gestão pública. Embora ainda persistam muitas divisões motivadas por questões ideológicas e eleitorais, se tem um enorme alinhamento e unidade de objetivos entre um número recorde de entes públicos, particularmente governadores, prefeitos e autoridades técnicas de saúde. Mesmo que este alinhamento não atinja a totalidade dos atores públicos com poder de decisão, ele assegura uma unidade muito maior do que a que tem sido vista no país há mais de uma década, talvez mesmo sem igual desde a luta pela redemocratização há mais de 30 anos.

O que garante este alinhamento é um protocolo comum, estabelecido pelas necessidades técnicas, mediado pelo conhecimento, construído na linguagem comum da racionalidade. A superação das afirmações ideológicas pela unidade em torno de objetivos tão concretos como emergenciais visando reduzir ao máximo uma situação crítica que custará vidas pode abrir um novo capítulo nesta nossa conturbada história política.

Esta situação pode preparar tanto lideranças capazes de dialogar umas com as outras no vocabulário comum da razão e do conhecimento – no qual o consenso é possível – quanto fazer avançar a cultura cívica de uma sociedade que passe a escolher seus líderes com base na qualidade efetiva das respostas, como cidadãos, e não por impulsos emocionais, como massa. Se chegarmos a isto, a largura do traseiro do cavalo romano deixará de atrapalhar os planos da estação espacial.

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