Artigo: “Por que as calçadas paulistanas devem ser um lixo?”


Jornalista Leão Serva escreve sobre a legislação que transferiu aos proprietários de imóveis a obrigação pela conservação das calçadas e da importância do projeto de lei de Andrea Matarazzo, que busca reverter o estado de abandono que predomina nos 35 mil km de calçadas.

12/12/2016

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Leão Serva*, na Folha de S. Paulo desta segunda, 12/12/2016.

Era uma vez uma cidade em profunda crise econômica. Seu governante, tentando resolver a urgente falta de dinheiro, decretou: as vias públicas serão cuidadas pelos donos dos lotes por onde passam! A partir de então, cada pedaço do asfalto passou a ser mantido pelo dono do imóvel em frente.

A medida resultou em imediato sucesso financeiro: o governo economizou o dinheiro destinado à pavimentação. Mas em poucos meses, as ruas passaram a expressar a diversidade de gostos e renda da população. O proprietário milionário ladrilhou seu pedacinho de rua com pedrinhas de brilhante. Alguns de seus vizinhos preferiram mármore ou granito enquanto os mais pobres deixaram o pavimento à sorte do tempo.

Se havia o dever de cuidar, também cabia o direito de escolher a estética: o morador palmeirense misturou tinta verde ao asfalto; seu vizinho tricolor preferiu faixas brancas e vermelhas; no bairro boêmio, bares patrocinados pintavam as ruas com cores de cervejarias e as floriculturas desenhavam rosas e margaridas.

O resultado geral, no entanto, foi o abandono, caracterizado pelos buracos. Proprietários sem dinheiro não faziam manutenção; outros simplesmente se esqueciam ou investiam seus fundos na preservação do imóvel do muro para dentro.

Quando a cidade se deu conta de que a decisão do prefeito tinha sido uma loucura, seu mandato já tinha acabado e ele mesmo, morrido. Restou para o futuro, o legado de abandono do espaço público, crateras e acidentes.

A cidade se chama São Paulo. O governante era Jânio Quadros (1985-88). A crise econômica só não era mais grave que a atual. E a lei maluca vigora desde então, mas apenas para as calçadas: a mentalidade que privilegia os automóveis impediu que a lei valesse para toda a via pública; ficou restrita àquela parte que afeta todos os moradores quando eles andam a pé.

O resultado, todos sabemos. Na semana que passou, o prefeito eleito João Dória disse que São Paulo é um lixo. Nada expressa melhor essa podridão do que o estado das calçadas, responsáveis por 20% das internações de ortopedia na rede pública, por acidentes causados por buracos e desníveis. Atire a primeira pedra na lei em vigor quem já tropeçou ou se feriu por um defeito no calçamento.

Quem não quiser jogar pedras pode pressionar os dois prefeitos (Haddad, atual, e Dória, eleito) que têm a chance de mudar o quadro atual, depois de 30 anos de caos causado pelo imediatismo de Jânio: foi aprovado pela Câmara em novembro um projeto de autoria do vereador Andrea Matarazzo (hoje no PSD) que devolve ao poder público a missão de cuidar das calçadas.

Haddad deve sancionar ou vetar a lei. No processo de transição em curso, é provável que consulte o sucessor. Matarazzo foi derrotado em dois processos eleitorais envolvendo os prefeitos, no ano que termina: nas prévias tucanas, foi ultrapassado por Dória; saiu do partido e foi candidato a vice de Marta Suplicy (PMDB), ficando atrás de Dória e Haddad. Mas se os alcaides olharem para a lei sem a lente eleitoral, provavelmente vão sancioná-la.

São Paulo tem cerca de 35 mil quilômetros de calçadas. A lei terá um impacto para a economia da Prefeitura: passa para os cofres públicos uma obrigação que hoje é dos donos de imóveis (salvo nas avenidas mais movimentadas, em que a missão já é da Prefeitura).

A equipe de Dória teme que a crise torne esse custo impagável. Há até uma informação, certamente maldosa, mas que circula entre as duas equipes, de que Haddad vetaria a medida a pedido de Dória. Duvido de que duas pessoas inteligentes possam ter uma visão tão tosca sobre a administração pública e imediatista sobre as finanças municipais a ponto de vetar uma lei que corrige um descalabro implantado por um governante emocionalmente desequilibrado 30 anos atrás.

Se a Prefeitura não tem dinheiro para assumir a obrigação em 2017, que sancione a lei e deixe a sua regulamentação para 2018; ou crie uma regra de transição que dure alguns anos. O fato é que a pulverização do dever de cuidar das calçadas fez delas a maior expressão do lixo paulistano, a que se referiu o prefeito eleito.

*Ex-secretário de Redação da Folha, é jornalista, escritor e coautor de ‘Como Viver em SP sem Carro’.

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